sábado, 14 de fevereiro de 2009

Festa

(a Roland Barthes)

Se ponho uma palavra aqui,
se tiro o pingo do i,
não importa.
Escolho as palavras a meu gosto
e as disponho como quero.

A palavra que não for escolhida
nunca será lida.

Pinço uma letra,
seleciono um fonema:
o escultor dá a forma que quiser com sua lima,
assim como da minha vontade depende a rima.

E nesse jogo constante
de um vocabulário abundante
muitos foram felizes:
Camões, Gregório e Dante.

Não sou eu que vou ficar fora dessa festa:
vou criar enquanto a vida me resta.

Decadentismo²

1, 2, 3, 4, 5.
5 goles de absinto.
5, 4, 3, 2, 1.
Mais 1 copo de rum.

46, 47, 48, 49, 50.
50 doses de menta.
5³, 7³, 21³, 4², 29³.
29³ tonéis de vodka e gelos em cubo.

E ainda não está bêbada a atriz.
E no quadro-negro risca a bissetriz
de um ângulo agudo

enquanto bebe cerveja no canudo
calcula com cuidado tudo
escreve com cigarro e fuma o giz.

Súplica

Eu: coberta de pólen, pelúcia, pluma, plúmbeo pó.
Você acompanhado e eu só.
Minha fada me quer, você não.
Eu passo fome e você mastiga o pão,
deixando as migalhas caírem no chão.
Bóio num grande lago,
você no cigarro dá um trago.
Cigarro, pólen, pão,
tudo perdido no espaço.
Deus, atento, desenha traço por traço
da ilustração desse calhamaço
que você nem quer ler, nem te interessa.
Eu te imploro um minuto de atenção, mas você tem muita pressa.
Eu: bailarina de perna quebrada.
Nunca mais te vi empunhar a espada,
que na sua vida sou apenas figurante.
Você no paraíso e eu no inferno de Dante.
E eu lhe peço: dê-me uma chance
de provar que há mel na minha colméia
que você pode comer até que canse,
até virar centopéia.

Conseqüência

No almoço comi frango
No jantar pavê de morango
E foi assim que desarranjei meu intestino
Tanto o grosso quanto o fino

E foi assim que vomitei
pois desafiei a lei
do tubo digestivo
e não há nenhum adjetivo

que torne belo essa história
tão banal, tão comum
tão sem graça, tão simplória

e foi assim que, comendo dois, em vez de um
não atingi a glória
e terminei tudo com um pum!

Deslocamento

Quem não é um patriota
e ao mesmo tempo um estrangeiro,
sentindo-se um idiota
diante de um país inteiro?

Brasileiro que não gosta de feijão,
mineiro comendo "fast food",
sírio falando alemão,
ou outra bizarra atitude?

Quem não é ao mesmo tempo,
um terráqueo e um marciano,
um deus fora do templo,

um eremita mundano?
Um baiano cem por cento,
com sotaque mexicano?

Em cima do muro

Minha mãe pediu-me que comprasse um brinco
que fosse em formato de bicho.
Comprei um de ornitorrinco
e ela o jogou no lixo.

Questionada a sua atitude,
disse ela tratar-se de uma aberração.
Um bicho que não se decide,
que não escolhe sim nem não.

Que não sabe se quer
ser mamífero ou ave.
Talvez tenha vindo de Marte
em suntuosa nave.
E o humano quando o viu
logo teve um enfarte.
Um bicho mais transgressor
que a surrealista arte.

Devia ser expulso da Terra,
ir talvez para o Tártaro
encenar seu espetáculo
que, se não é cômico
tampouco o é trágico.

Digestão

Como uma omelete
de sobremesa um Danete
vou ao banheiro e teclo delete.

Bissoneto

Desfilo pelas ruas
minha expressão amarga de poeta
Pois estes têm as faces nuas
no Japão ou na ilha de Creta.

Não adianta maquiagem
que disfarce nossas rugas
Não é medo nem chantagem
Somos como as tartarugas

que têm o casco duro.
Nada modela nossa face
e alívio não traz o ar puro.

Comemos brócolis e alface
batemos a cara contra o muro
não temos instrumento com que se cace

Nem faca nem arpão.
E também não temos
ingredientes para o pão.
No limbo ardemos.

Não há máscara que esconda
nosso rosto de molusco
Vai e vem a onda
na madrugada e no lusco-fusco.

Somos deuses pecadores.
Não nos adaptamos a esse mundo.
Somos disformes tratores

somos vis e vagabundos.
Espalhamos terrores
como um pobre corcundo.

De novo eles...

5, 4, 3, 2, 1.
Alfredo soltou um pum.
10, 9, 8.
Alfredo deu um arroto.

Lá fora os pássaros não param de latir
e na minha barriga tem um furúnculo.

Em meus sonhos, uma incógnita me abraça.
Não sei com quem vou estar no "happy end".

A suma devoção

Que olhar seu era aquele
como se olhasse um deus?
Nem a própria Hera
olhava assim para Zeus.

Seus olhos como que estavam
diante de sagrada escultura
como nunca ficariam
ante minha sepultura.

Seu par de bolas de gude
entornavam um caldo, um grude
de medo e contemplação.

Suas esferas, líquidas, destilavam
embevecimento e veneração.

Queria que me olhasse assim.
Pelo menos 1/4 dessa emoção
queria destinada a mim.

Mas não posso competir com
um ser áureo
que mereça a sua dedicação.

Irás até o fim por essa paixão:
tragédias, dramas, infernos
enfrentá-lo-ias todos
só pra ter esse mel
com que rechear seu pão.

Sina

Não tem mais graça
essa desgraça.
Mais sorte tem a traça
que dos livros se alimenta
ao sabor que inventa:
cravo, canela ou menta.

Ferida que nunca passa.
Fel bebido na taça.
Folha que a mão amassa.
A infelicidade se sustenta.

Desconsolo

Minha consciência
me atormentará eternamente!
Pois não tive decência!
Quase que não sou gente!

Fui demasiado cruel
com o sonho teu.
Para me consolar nem o céu,
só mesmo Morfeu!

Nem os versos que escrevo
servem para me acalmar.
Pois não merece relevo
coração que não sabe amar.

Indagações

"Existir não é lógico."
Clarice Lispector

O mundo é um amálgama confuso,
um quadro de Picasso,
ou uma escultura futurista?
Um vômito espalhado,
um papel amarrotado,
ou uma grafia ilegível?
Sim, o mundo é absurdo.
Não há nenhuma lógica em viver.
E agora?
Onde me escondo,
agora que o teto desabou?
Agora que o segredo está com a barriga aberta
e suas tripas escorrem pelo chão?
Quantas ruínas sustentam o mar plácido?
Quem vai me buscar na escola?
Desde quando lhe devo uma resposta?
Quantas pérolas foram enterradas na lama?
Por quê ninguém me ama?
Quando terminarão as perguntas?

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Siameses

As almas são duas.
O corpo, único (embora redundante).
Mera questão de caridade:
- eu divido com você
as células que você não tem.

Soneto

Uma parte de mim está perdida:
escorreu pelo ralo e disse adeus.
A outra que sobrou está ferida
e amaldiçoada por Zeus.

Corre, sombra, corre!
Foge da tua maldição!
O sangue e o pus escorre
de dentro do meu coração.

Cabra da peste, estupenda besta
resolveu me atazanar logo depois da cesta!
E não posso nem procurar consolo:

Comeram todo o meu bolo:
Casca, recheio e miolo
e jogaram o resto na fresta!

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

fome

o pão para o papo é pérola

Fado

De instrumentos despida,
como criarei minha vida?
Minha história é uma obra
que nunca será lida.

Estou totalmente nua:
sem carvão ou pincel
sem pena ou espátula
sem buril ou cinzel
(Só posso fazer uma arte
usando o meu próprio fel)

Sem recursos para viver,
o que posso fazer?
Sim, sim, já sei:
poeta nasceu para sofrer.

Blá blá blá

Não depauperemos o monólito
descascando o monólogo como a uma espiga de milho.
Salpiquemos os pedregulhos como se fossem sementes de girassóis silvestres.
Antão as ruínas brotarão como um tumor
que surge embolorando o que é sadio.
Contaminemos as esponjas com pus.
Colheremos o cuscuz nosso de cada dia
para adquirir a carta de alforria.

Blá blá blá acadêmico

Estava eu naquela faculdade
quando a baba começou a escorrer
pelo canto da boca, num fio.
Mas logo transformou-se num rio
caudaloso, pegajoso.
E eu tentei nadar.
Mas por mais que eu bracejasse,
não alcançava a margem.
A baba me submergiu.

Órfã

Aos poucos
um a um
todos foram me abandonando.
Mas, até você, Deus?

Pergunta

Sou uma ilha
num mar de interrogações.
Quando o barco da exclamação
atravessará as águas da incerteza
para me salvar?

Fendas férteis

Os prédios
arranham os céus.
E dos rasgos do firmamento
caem as estrelas.